O Dia Nacional da Visibilidade Trans, celebrado no último sábado, foi instituído a partir do lançamento da campanha “Travesti e Respeito”, em 29 de janeiro de 2004. Desde então, iniciou-se um movimento contra a transfobia e para destacar o orgulho, a existência e a resistência da comunidade transgênero no país.
Para celebrar a data, o Jornal da Advocacia (JA) entrevistou Márcia Rocha, primeira advogada brasileira a exercer a profissão com nome social e primeira conselheira transexual da Ordem dos Advogados do Brasil seção São Paulo (OAB SP). Abaixo, conheça a história dela:
JA: A partir de quantos anos você começou a se reconhecer como mulher? Houve resistência da família e de colegas para sua transição de gênero?
Márcia: Comecei a me identificar com o sexo feminino desde a infância, com quatro anos. Só que não havia informação e eu não tinha a menor ideia do que acontecia comigo. Aos 13, cheguei a tomar hormônios, quando meu pai percebeu meus seios crescendo e me levou ao médico, convencendo-me a parar, mas fiquei levando uma vida dupla durante todo o meu crescimento. Da minha família, somente meu pai que soube [do meu reconhecimento como mulher], mas ele sempre me pedia para que eu ocultasse meu lado trans, naquela época – meados de 1970.
JA: Em que ano você foi graduada? Por que escolheu cursar a faculdade de Direito?
Márcia: Sou da turma de 1989, da Pontifícia Universidade Católica [PUC] de São Paulo. Na verdade, tinha vontade de fazer Psicologia, mas uma tia, já falecida – que foi uma das primeiras mulheres advogadas na PUC –, insistiu muito para que eu cursasse Direito, para ajudar nos negócios da família, e acabei seguindo nessa direção. Quando eu estava no quarto ano de faculdade, fiz estágio na antiga Procuradoria de Assistência Judiciária, esse foi o único momento em que advoguei mesmo, em Litígio, Família, Processos de Família, mas sempre Cível, nunca Criminal e nem Trabalhista. Eu era advogada imobiliária, trabalhava com contratos em corporações, pois tenho empresa nessa área. Só fui entrar na parte de ativismo e Direitos Humanos muitos anos depois, já transicionada.
JA: Como foi o processo até a OAB lhe autorizar a usar o nome Márcia Rocha no exercício da profissão?
Márcia: Uma das primeiras vezes que apareci publicamente [com meu nome social] foi em um evento da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero [da seção paulista da Ordem], no ano de 2011. Em seguida, fui convidada para fazer parte dessa comissão e passei a fazer palestras para as subseções da OAB por todo o país, em faculdades de Direito. Dois anos depois, num desses eventos, questionaram-me por que não encontravam o nome Márcia Rocha no cadastro da OAB SP, daí, o Dr. Assis Moreira Silva Junior (in memoriam) e o Dr. Dimitri Sales, que estavam na mesa comigo, propuseram que entrássemos com o pedido na Ordem para uso do meu nome social. Foi um processo longo – somente em 2017 que obtivemos a vitória, com aprovação por unanimidade no Conselho Federal. Nós conquistamos isso com o apoio total da Dra. Adriana Galvão Moura Abilio, que presidia a Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero, na época (ela é a atual presidente da CAASP [Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo]), e do Dr. Marcos da Costa, então presidente da Secional.
JA: O que significa ser reconhecida como a primeira advogada transgênero trabalhando com nome social no país?
Márcia: Essa conquista foi muito importante, porque, até 2017, não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro, não tenho notícia de ninguém que tenha conseguido ter dois nomes – o de registro e o social – num documento federal. Além do ineditismo, ela foi bastante significativa, pois mostrou que a OAB estava do lado dos Direitos Humanos, da dignidade humana, servindo de inspiração para que outros setores da sociedade pudessem seguir esse exemplo. Um ano depois, o Supremo Tribunal Federal determinou a possibilidade das pessoas trans fazerem alteração de nome e sexo no documento, bastando uma mera autodeclaração em cartório. Não sei se houve uma influência [do meu caso], mas acredito que sim.
JA: Depois dessa conquista junto à OAB, tem conhecimento de quantas pessoas conseguiram o mesmo?
Márcia: Várias pessoas foram demandar o uso do nome social na OAB, já em 2018, quando peguei minha carteira. Conheci algumas. Um veículo de imprensa apurou que mais de 80 profissionais da advocacia, naquele ano mesmo, haviam feito essa solicitação junto à Ordem. Teve bastante repercussão.
JA: Como tem sido sua atuação na Secional (desde a aprovação no Exame de Ordem, à participação em comissões temáticas, até ser eleita como a primeira conselheira trans da entidade)?
Márcia: Desde 2011, integro a Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero e, recentemente, fui eleita conselheira na chapa da Dra. Patricia Vanzolini e do Dr. Leonardo Sica. A luta sempre foi pela busca de direitos, promovendo eventos, tentando divulgar nossa causa, independente da gestão da OAB SP, pois o trabalho em favor da advocacia e pelas pessoas LGBTQIA+ está acima das questões políticas eleitorais.
JA: Fale sobre sua experiência profissional a partir do uso do nome social. Você já viveu alguma situação de preconceito no ambiente de trabalho?
Márcia: Passei por duas situações estranhas, no exercício da advocacia. Uma vez, em uma prefeitura, uma funcionária não quis aceitar meu registro social, dizendo “seu nome não é esse”. Depois, atuando em um processo, o juiz pediu para que eu juntasse a cópia da minha OAB para ver se, realmente, podia assinar – como sempre faço – Márcia Rocha e, entre parênteses, Marcos Cesar Fazzini da Rocha. Fora isso, de modo geral, há muito respeito, especialmente porque, aqui em São Paulo, existe a Lei Estadual 10948/2011, que garante às pessoas LBGTQIA+ frequentarem qualquer ambiente público ou privado sem serem desrespeitadas, e há punição administrativa para servidores [se praticarem qualquer ato discriminatório em razão da orientação sexual], então, em delegacias, cartórios, no fórum sempre fui muito respeitada.
JA: Em sua opinião, o mercado de trabalho está mais inclusivo ou ainda tem muito a avançar quando o assunto é diversidade?
Márcia: Sou fundadora e coordenadora do Projeto TransEmpregos, que ajuda pessoas trans a se inserirem no mercado de trabalho. Em 2020, nós tivemos 707 contratações; no ano passado, 797. Já ultrapassamos a marca de 1500 empresas parceiras, todas contratando pessoas trans, anunciando vagas. Então, com certeza, vem melhorando muito, também pelo nosso trabalho. Hoje, há uma conscientização maior dentro do mercado, com um movimento de inclusão de pessoas minorizadas (LGBTQIA+, com deficiência, negras e negros), e a gente foi crescendo junto, com toda essa movimentação – participando dela, efetivamente. É claro que temos muito trabalho pela frente, mas já avançamos bastante nestes últimos oito anos de TransEmpregos, que foi fundada em 2013.
Fonte: Jornal da Advocacia | 4 de fevereiro de 2022